O filme que mudou a história do cinema e que você talvez não tenha visto (mas deveria)
Quase cinco décadas atrás, Steven Spielberg foi procurado para dirigir um filme, não só novo como revolucionário. Tratava-se de verter para o cinema o best-seller de Peter Benchley (1940-2006), sobre uma besta marinha que, impiedosa, ousada, indiferente aos desejos humanos, avançava do mar aberto para a praia devorando o quer que se mexesse diante de seus dentes, pontiagudos e imensos. Spielberg, então com 29 anos, aceitou o desafio proposto pelos produtores Richard Zanuck e David Brown, mas contra-atacou: o monstro não deveria ser visto antes da primeira hora de projeção. Zanuck e Brown julgaram aquilo um disparate, e mais, capricho de um fedelho, que embora inegavelmente talentoso — o diretor já havia apresentado os comentados “Encurralado” (1971) e “O Expresso da Terra do Açúcar” (1974) —, extrapolava. A dupla já travara contato com designers e engenheiros a fim de desenvolver o protótipo mais fidedigno de uma criatura que fazia da morte seu meio de vida, portanto não haveria razão alguma (nem a menor lógica) para esconder o grande astro da trama, muito menos por tanto tempo. O diretor bateu o pé, certo de que a história far-lhe-ia justiça, e assim foi.
“Tubarão” é um filme de combustão serena. Lançado no Brasil no dia de Natal de 1975, o longa de Spielberg, inspirado no livro homônimo de Benchley, abriria um precedente inédito na forma de se fazer e se conceber o cinema. Se antes uma atividade que se adequava mais à contemplação, à apreciação, a um pacto tácito em que o espectador respeitava o caráter então solene das salas de cinema e mantinha-se quieto, “Tubarão” queria que o público vibrasse, tremesse, recolhesse as pernas sempre que se entendesse que o bicho estava à solta. Conseguiu. Talvez por tocar em pontos muito sensíveis do espírito do homem, com o filme ainda em curso, era possível se ouvirem comentários francamente desastrosos, ao longa e a seu realizador. Spielberg não se abalava, e aos poucos, se permitiu gozar do sucesso que, dividido com “ET. O Extraterrestre” (1982), o levaria às estrelas e faria dele um dos profissionais mais respeitados e bem pagos de Hollywood. E ainda haveria muito pela frente.
O diretor se vale da ótima máxima hitchcockiana que distingue surpresa de suspense. Em vez de detonar a bomba que há de sacudir o enredo em algum momento, Spielberg quer mais é ela que permaneça quieta, silenciosa, até que tudo esteja tão solidamente posto que mereça ir pelos ares. Assim, seu tubarão fica nadando em círculos, apurando o faro, pronto para entrar em cena, mas se fazendo presente por meio do que acontece aos personagens que, por alguma razão, acabam dando de cara com ele. Valendo-se desse expediente, o de esconder o verdadeiro protagonista, mas deixar cada vez mais evidente do que é capaz, Spielberg compõe um dos thrillers mais sofisticados já feitos, depurando o terror sutil do ótimo roteiro de Benchley, Carl Gottlieb e Howard Sackler (1929-1982).
Em tempos de negacionismo, a natureza se encarrega de gritar para o homem que não ignore as evidências, arroste os problemas, tenham a gravidade que tiverem, e resolva-os. “Tubarão” atesta que o homem erra e segue errando quanto a compreender a ciência — e o próprio mundo que o rodeia —, sendo ele mesmo quase sempre o culpado pelas tantas catástrofes que o vitimam. Cult também por se valer dos mais insólitos recursos tecnológicos (recursos tecnológicos disponíveis à época, que se diga), uma fera hostilizada em seu próprio hábitat — cada vez mais precarizado pela falta das condições de sobrevivência mais básicas, resultado direto da degradação ambiental, que elimina da cadeia alimentar os seres que lhe serviam de comida —, peixe gigantesco, esfaimado e furioso, passa a rondar a praia de uma certa Amity, cidadezinha litorânea cuja economia tem por esteio o turismo. Larry Vaughn, o prefeito ambicioso e estúpido vivido por Murray Hamilton (1923-1986), quer a todo custo abafar os ataques, mas o xerife Martin Brody, de Roy Scheider (1932-2008), não se submete e, à sorrelfa, requer a análise do oceanógrafo Matt Hooper, o especialista em vida marinha interpretado por Richard Dreyfuss. Hooper parte numa expedição suicida, a bordo de um barco visivelmente acanhado para a missão, a fim de encontrar o vilão do filme, ajudado por Quint, o marujo com décadas de convés, curtido de sol e rum, personagem de Robert Shaw (1927-1978).
Como se está falando de 1975, nem se cogitava citar manejo de espécies ou algum outro mecanismo científico mais ponderado: eles não admitem nenhuma outra solução a não ser dar cabo do tubarão branco. Em terra firme, um grupo de moradores se dedicam a capturar e matar o assassino, não por senso cívico ou em solidariedade a família das vítimas, que aumentam exponencialmente, mas de olho na recompensa de três mil dólares oferecida por Vaughn. Eles se instalam num píer, onde amarram uma corrente com a isca que, acreditam, vai atrair o Grande Branco e fazê-lo parar. Todo o esforço vai, literalmente, por água abaixo: assumindo seu lado perverso de vez, o predador leva o petisco com corrente e tudo, levando o atracadouro e os homens para o fundo do mar numa das cenas mais cheias de simbolismo de “Tubarão”.
A maior bilheteria da história do cinema até então, “Tubarão” mudou toda a forma como se compunha o mercado e o protocolo de estreia de filmes. Se antes o verão era destinado a produções alternativas, pouco relevantes ou desabridamente ruins, o trabalho de Steven Spielberg, que chegou às salas de projeção dos Estados Unidos em pleno vigor da estação, colocou por terra esse paradigma, e o meio do ano passou a ser disputado a tapa por estúdios e distribuidoras. Quanto a Spielberg, sua carreira passou a ser classificada em a.T. e d.T., isto é, antes e depois de “Tubarão”. Talvez o diretor fosse longe de qualquer jeito, mas é evidente que o longa de 1975 jogou uma generosa massa d’água em seu moinho, de onde sairiam joias raras e tão dispares entre si como “A Lista de Schindler” (1993) e a refilmagem de “Amor, Sublime Amor” (2021), baseado num dos mais famosos musicais da Broadway e sensação em 2022. Como ninguém chega aonde Spielberg sem ajuda, o primeiro blockbuster de que se tem notícia só se mantém no topo ainda hoje, transcorridos 47 anos, muito por causa da lendária trilha sonora do mestre John Williams. Em nenhuma outra manifestação artística há uma confluência tão pronunciada de talentos tão sublimes. Que venham outros gigantes, de mares por serem desbravados.
Filme: Tubarão
Direção: Steven Spielberg
Ano: 1975
Gêneros: Thriller/Aventura/Terror
Nota: 10